Não são poucos os jovens artistas que frequentemente sofrem da síndrome do reconhecimento veloz: eles nutrem uma enorme crença de que seus talentos serão rapidamente notados por alguém importante, ganharão prêmios de renome, e sua arte conquistará todo o mundo em um tempo hábil consideravelmente curto.
Para a grandiosíssima maioria dos criadores, essa cartilha não chega nem perto de se concretizar. E é possível que ainda na juventude percebam que o mundo real quase nunca oferece condições dignas para a sua caminhada.
Esse roteiro de esperança desmedida e desilusão magoada ocorreu comigo e com quase todo artista no meu entorno. Muitos penduraram a chuteira. Alguns se tornaram criadores ocasionais, pegando um violão no churrasco de família ou desenhando esboços em reuniões e salas de espera.
Entre os que continuam na senda da arte, os tipos se dividem. Alguns entenderam que a colaboração fortalece a si e a seu entorno simultaneamente. Tem os que não entenderam essa dinâmica e se tornaram competitivos, acreditando que a economia da arte é tão baseada em escassez quanto a de petróleo ou minério de ferro. Tem os que aprenderam a equilibrar essa delicada balança de empresariar a si mesmos. Tem também os que entraram nessa senda por amor à arte, mas descobriram talentos ocultos em outros setores do ofício (como edição, produção, e até mesmo divulgação).
Quanto a mim, acabei indo parar em um paraíso paradoxal, que me enche de alegria profunda, mas que não deixa de ser uma bifurcação. Tudo começou quando li o livro Atlas ou o Gaio Saber Inquieto (vol.III da série O Olho da História) do historiador de arte Georges Didi-Huberman. Ali, ele confronta duas dimensões da feitura da arte: o processo (table) e o produto finalizado (tableau), argumentando que o verdadeiro estímulo e a vida pulsante da arte estaria justamente no momento de contato com a mesa do atelier, a table onde a obra é feita, o instante do processo. Uma vez que a obra de arte se encontra na etapa da tableau (moldura), ela está finalizada, acabada – e, pelo menos para o artista, seu aspecto lúdico foi esgotado.
O que as pessoas veem no dia a dia é a obra pronta, acabada, emoldurada. E não apenas isso, mas o fetiche da obra (como discutia o filósofo e historiador Walter Benjamin), e a glória em torno da figura e da carreira do artista. No atual estágio do capitalismo, crescem os nichos de devoção à artistas e marcas – isso que chamam de fandom – e, para muita gente, arte tornou-se sinônimo de uma simbologia atrelada à fama, reconhecimento, e, sobretudo, dinheiro.
Muitos veem apenas o artista com roupas de marca e ternos bem cortados, recebendo prêmios e sendo reconhecidos em palcos chiques de convenções e eventos de toda ordem. Poucos veem o dia a dia desses mesmos artistas, seus espaços de caos: escritórios, ateliês, lugares onde o processo criativo é materializado de fato. Ali a pessoa criadora se encontrará imersa em etapas de trabalho desprovidas de glamour, com as mãos sujas e suor nas têmporas, onde tentará equilibrar seu desejo de criação, as condições materiais, e as demandas de sua vida familiar e profissional. A realidade do artista em seu ateliê quase nunca é demonstrada de maneira verossímil, sem mistificação nem raio gourmetizador. A verdade é que, nas oficinas e estúdios de trabalho criativo, você vai encontrar muito suor, bagunça, por vezes dor, além de culpa, dúvidas e muita, muita coisa pra fazer.
Mas é na mesa da oficina que a magia acontece. Ali, tudo é vivo. É quando se brinca de ser Deus, criando e desfazendo mundos em um piscar de olhos. É quando seus personagens parecem vivos, ou quando a composição de uma canção pode subitamente adotar um acorde modal ou uma mudança de ritmo, se for conveniente. É o campo das possibilidades, dos experimentos. Tudo ali é orgânico e dinâmico.
O meu paraíso paradoxal envolve o fato de que, uma vez que vi mitigarem as expectativas de um reconhecimento amplo (ou minimamente digno) do ofício artístico, encontrei no processo criativo uma fonte imensa de entusiasmo e restauração. Meu espírito enxerga a mesa de trabalho criativo como uma espécie de altar transfigurado. Entretanto, uma vez que uma obra de arte perde sua qualidade de brinquedo ativo, se tornando concluída e fechada, é difícil para mim manter o interesse.
Antigamente, tínhamos pessoas que pegavam essa obra e a distribuíam e vendiam. Nessa época de grandes editoras, gravadoras, curadores, institutos, e conglomerados em geral, existia uma cadeia de pessoas atuando, com remunerações que, se não eram justas, ao menos permitiam que os envolvidos tivessem um conforto material mínimo. Mas o mundo contemporâneo jogou todo o ônus da circulação para cima do pobre artista. Como se produzir arte já não desse trabalho e tomasse tanto tempo...
Vivemos em uma realidade na qual a precarização profissional é camuflada com eufemismos: “você não é um assalariado sem direitos trabalhistas e sem incentivo, você é um empreendedor”. O fato é que boa parte do mercado criativo carece de estruturas de mediação e de fomento. E, em muitos setores, essa responsabilidade é jogada para o colo dos criadores, que não foram capacitados para isso – e, na maior parte das vezes, não gostariam de se envolver com tais etapas. Até mesmo porque, a cada dia, torna-se mais caro e mais árduo fazer sua obra circular. Os algoritmos mudam suas regras, o tipo de post que viraliza torna-se clichê muito rapidamente, e as plataformas parecem favorecer e impulsionar apenas os que já são grandes e bem-sucedidos.
O que chamamos de indústria cultural é visto pelas pessoas como uma meia dúzia de artistas que aceitam ser embalados como produto de consumo fugaz, obtendo com isso fama e dinheiro. Enquanto isso, do lado de fora dessa indústria, há uma horda de pessoas e grupos jogados à própria sorte, que, a despeito de muitas vezes dominarem seus ofícios e terem uma expressão genuína para compartilhar, circulam em nichos cada vez mais fragmentados. É mais um efeito colateral de se viver em um país cuja economia é baseada em extração de matéria prima. A cultura, o turismo e outros tipos de economia limpa não são do interesse das elites brasileiras (tudo aquilo que essas mesmas elites acham lindo quando viajam para a Europa).
As grandes produções em todas as artes, seja no Brasil ou no exterior, subsistem com uma gigante estrutura financeira, cujo hype é construído com divulgação massiva e apoio das grandes instituições de comunicação. No mundo contemporâneo, quase sempre a expectativa é infinitamente maior que o resultado final do produto anunciado. Não é à toa que o grande poder de mobilização da indústria cultural atual é a reciclagem de obras de décadas passadas (quando as verdadeiras cabeças criativas em diversas áreas eram as mais valorizadas).
Da minha parte, o processo tem sido a verdadeira recompensa por trás de tudo isso. E é assim que deve ser. Sofrer pelo produto não precisa ser papel do artista. Já passamos do tempo de precisar criar obras condicionadas a expectativas comerciais de toda ordem.
Claro que isso não significa que uma obra de arte deva ser anticomercial – hermética e inacessível ao grande público. Mas, se existirem razões estéticas por trás de seu projeto, o artista deve ter o direito de produzir algo excêntrico.
Nesse contexto atual, o produto artístico se assemelha cada vez mais a arremessar garrafas no oceano, esperando que encontrem algumas pessoas abertas a uma comunhão. Com paciência e esmero, carreiras podem ser construídas. Mesmo em tempos de maior opulência e investimento, as coisas nunca foram fáceis para os criadores.
No fim das contas, se for para se dedicar a um processo artístico que não faça sentido, melhor mudar de ramo. Não há pressuposto mais essencial para um artista que enxergar a sua mesa de trabalho como um espaço sagrado. Se o processo não for a sua grande recompensa, melhor repensar as suas prioridades no ramo da criação.