A mensagem contracultural de São Francisco
O místico que reabilitou a natureza dentro (e fora) do Cristianismo
Em outubro, comemora-se o dia de São Francisco de Assis (no dia 04/10). Considero este um santo fundamental na doutrina católica, porque ele reintroduz alguns elementos até hoje controversos para a Igreja: o amor à natureza, os animais, esse elo mundano que o catolicismo empurrou para debaixo do tapete junto com o paganismo (ou misturando com ele, enfim).
Nesse texto da newsletter, falarei um pouco de um filme que muitos consideram datado, mas que me fez acolher a mensagem de Francisco ainda na tenra infância. Depois comentarei alguns elementos da doutrina franciscana que me são bem caros.
Quando Francisco foi um hippie
Desde a infância, tenho uma simpatia por Francisco, e a semente desse encantamento precoce veio sem dúvidas do filme Irmão Sol, Irmã Lua (no original: Brother Sun Sister Moon). As pessoas da minha geração certamente se lembram dessa obra que a Globo sempre reprisava na Sessão da Tarde. Originalmente lançado em 1972, e dirigido por Franco Zeffirelli, trata-se de uma hagiografia (biografia de um santo) calcada na vida de Giovanni di Pietro di Bernardone (ou São Francisco de Assis).
Zeffirelli repetiu nesse filme diversos elementos que deram certo antes na sua adaptação cinematográfica de Romeu e Julieta (1968), principalmente em relação a fotografia sofisticada e também na dinâmica do casal de protagonistas (Francisco e Clara).
Mas, na filmografia de Zeffirelli, um dos destaques alcançados com Irmão Sol, Irmã Lua foi representar uma versão “hippie” de Francisco. Para não deixar dúvidas de que a intenção do diretor era conscientemente aproximar o santo da contracultura vigente na época, é só prestarmos atenção na trilha sonora, composta por ninguém menos que Donovan.
Peço licença para falar um pouco desse interessante cantor (dado o fato de que é um artista pouco conhecido no Brasil). O bardo escocês Donovan se revelou dentro da cena folk britânica dos anos 60, só que, diferente dos engajados e politizados cantores folk americanos do período (como Bob Dylan ou Pete Seeger), ele estava liricamente mais próximo da psicodelia e do movimento flower power. Amigo dos Beatles, Donovan viajou com a banda para a Índia em 1968, e lá ensinou à Lennon e McCartney uma técnica de violão que seria fundamental para a composição de músicas como “Dear Prudence” ou “Blackbird”.
Uma curiosidade é que as canções interpretadas por Donovan na trilha sonora de Irmão Sol, Irmã Lua nunca foram adequadamente lançadas para além do filme em si – se alguém procurasse um vinil para comprar, iria encontrar apenas a trilha italiana, com letras alternativas (em italiano) cantadas por Claudio Baglioni e trilha incidental de Riz Ortolani.
Donovan diz que passou décadas ouvindo seus fãs cobrarem pelo lançamento da trilha, e sempre respondia que não era detentor dos direitos de gravação, o que lhe impedia de lançar essas versões. Em 2004, o artista finalmente gravou novas versões acústicas (sem orquestra) para esse repertório, reunidas em um disco chamado Brother Sun Sister Moon.
Outra curiosidade do filme é que, apesar do ator responsável por interpretar Francisco ser o inglês Graham Faulkner, por pouco, o santo italiano não foi interpretado por um brasileiro. O cantor e compositor Caetano Veloso morava em Londres nessa época (era seu período de exílio, em pleno auge da Ditadura civil-militar brasileira), e por acaso cruzou com Zeffirelli na rua. O diretor ficou impressionado com o tipo exótico do cantor tropicalista, mas esse fascínio acabaria não trazendo resultados concretos, e Caetano não foi escalado nem mesmo como figurante. Do mesmo modo, o ator Al Pacino – que até chegou a fazer testes para o papel principal – foi julgado por Zeffirelli como sendo muito “teatral”.
Quem assumiu a pele do santo italiano foi um ator inglês, que precisou usar lentes de contato para esconder seus olhos azuis. Graham Faulkner fez poucos filmes em sua carreira, e acabou se aposentando da sétima arte em 1984, quando foi trabalhar em um banco britânico. Ao longo do tempo, isso contribuiu para certa mística em torno de Irmão Sol, Irmã Lua, visto que seu principal rosto envolve um ator que não habita a memória coletiva para além da obra de Zeffirelli.
Faulkner deu uma rara entrevista em 2022, onde revelou detalhes até então desconhecidos do filme. Como o fato de que foram filmadas algumas cenas que mostravam Francisco antes de sua conversão. Entretanto, o diretor achou que o personagem parecia ali muito mimado e irritante, e essa parte não entrou no corte final. Tendo a concordar com o balanço feito por Faulkner nessa entrevista: do ponto de vista dramatúrgico, a retirada dessas cenas foi um baita erro, tornando a história toda muito abrupta e sem contraste entre o “antes” e o “depois” e Francisco.
Apesar dos pesares, confesso que a aura bicho-grilo de Irmão Sol, Irmã Lua me fascinou naqueles anos da infância, quando vi o filme pela primeira vez, significando um verdadeiro um ponto de partida para querer saber mais sobre Francisco. Anos depois, tive contato com diversos livros de autores ligados à Teologia da Libertação, como Leonardo Boff ou Frei Betto, e pude aprofundar esse interesse pela mensagem franciscana.
Francisco e a Igreja Católica
A meu ver, a maior contribuição de São Francisco de Assis para a tradição católica está em readmitir o papel da natureza como manifestação divina. A síntese mais conhecida da sua visão naturalista está no poema Cântico das Criaturas (ou Cântico do Irmão Sol), onde ele enumera diversas entidades e elementos da natureza como sendo seus irmãos e irmãs.
Francisco viveu no período da Alta Idade Média, e a perspectiva contida em seus discursos e práticas é bem diferente do que a Igreja Católica defendia nessa mesma época. As ideias cristãs oficiais em voga vinham da Escolástica, cuja visão ortodoxa considerava o ser humano como sendo vocacionado para dominar e submeter o mundo material/natural de acordo com suas próprias necessidades.
Com o apoio da Igreja, pensadores escolásticos como Santo Anselmo de Cantuária e Pedro Abelardo tentavam aproximar a fé cristã da razão aristotélica, enquanto, ao mesmo tempo (e de maneira um tanto subversiva na época), o italiano Francisco demonstrava uma abordagem espiritual e teológica bastante distinta, ao pregar uma vivência simples do Evangelho baseada na humildade e na comunhão com a natureza.
No período de vida de Francisco (1181-1226), o conceito de “ecologia” ainda não tinha sido desenvolvido, mas é nítido que esse importante santo católico foi um dos pioneiros das práticas e discursos acerca da importância do meio ambiente e da preservação da natureza.
Além disso, não me parece exagerado pensar que a cosmovisão franciscana cumpre a façanha de reintegrar ao catolicismo diversas práticas de culturas pagãs perseguidas pela inquisição. Pois penso ser possível traçar paralelos entre o discurso de Francisco e os registros de tradições celtas, germânicas, eslavas, bálticas e tantas outras.
Levando essa hipótese mais adiante, eu diria que a mensagem de Francisco tenta sanar um suposto problema teológico detectado pelo psicólogo Carl Gustav Jung. Em obras como Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo (1951) ou Resposta a Jó (1952), esse importante pensador suíço afirmou que diversos aspectos da espiritualidade naturalista e telúrica típica de crenças pagãs foram reprimidos pelo inconsciente judaico-cristão ocidental.
Todos os elementos doutrinários do cristianismo institucional se desenvolveram através da ideia de dominação da natureza. Como as culturas pagãs eram tidas como antagonistas pela Igreja, a elaboração dessa religião oficial só poderia significar o oposto da perspectiva naturalista.
As ideias escolásticas foram um instrumento retórico do cristianismo medieval institucional para revestir sua doutrina de uma intenção racionalista, onde a natureza se convertia em qualquer coisa de útil para as necessidades humanas, mas essa mesma natureza nunca era tratada ou pensada como algo dotado de sacralidade.
Em termos psicológicos, me parece possível afirmar que a perspectiva pagã se tornou uma sombra do cristianismo. Na psicologia analítica, o conceito de sombra aborda aspectos da personalidade (no caso do indivíduo) ou da cultura (no caso das sociedades) que são rejeitados ou reprimidos. Obviamente, esses conteúdos continuam a existir, mas agora não mais na esfera consciente, e sim em um espaço subterrâneo (quase inacessível), que seria o inconsciente. Se esse conteúdo não for reintegrado, ele pode acabar retornando de maneiras desagradáveis – ou, para usar uma imagem cristã, de maneiras demoníacas (não à toa, as representações católicas do diabo remetem a versões do deus Baco/Dionísio, com seus cifres e garfos).
Ao longo da história, diversos sincretismos religiosos podem ser considerados como apropriações pagãs dentro do cristianismo, e mostram como esses conteúdos puderam resistir ao tempo, esperando pelo momento em que seriam reativados e devidamente reintegrados. Lá atrás, Francisco já buscava reintegrar essa sombra à sua maneira, e o fez em uma época repleta de tensão – basta lembrar que, cinco anos após a morte do santo italiano, em 1231, o Papa Gregório IX daria início à Inquisição.
O fato é que Francisco acabou criando uma tradição de dissidência saudável no coração do cristianismo. Isso explica porque ele foi o inspirador da já mencionada Teologia da Libertação na América Latina, doutrina conhecida pelo combate à regimes autoritários e ditatoriais no continente.
Francisco também inspirou o nome e a doutrina defendidos pelo atual Papa Jorge Mario Bergoglio (eleito em 2013). Uma das primeiras encíclicas do Papa Francisco, Laudato Si’ (2015) teve o título e o tema retirados do “Cântico das Criaturas”, e discute a necessidade de cuidar do meio ambiente e do planeta (chamado por ele de “casa comum”). A perspectiva do Papa Francisco, com uma abordagem pastoral que valoriza a renúncia aos bens materiais, a ecologia e o pacifismo, difere da ortodoxia e o conservadorismo visto em Papas anteriores.
Portanto, os elos entre a contracultura e a vida de Francisco no filme Irmão Sol, Irmã Lua não parecem incongruentes. Claro que se trata de uma obra cinematográfica que, sobretudo para o público contemporâneo, pode parecer excessivamente doce, domesticada ou até mesmo irreal do ponto de vista histórico. Mas creio que seu mérito é o de traduzir dramaticamente a essência da mensagem franciscana, de um modo que pareça cativante para pessoas de várias idades.
A maneira como encarei o filme na infância prova que essa intenção funcionou, e, no meu caso, a narrativa dirigida por Franco Zeffirelli serviu como porta de entrada para a doutrina de um dos santos que mais inspiram minha prática e minha visão de mundo.
Que lindo texto. Donovan fez muito sucesso nos anos 1960, teve uns dois ou três hits muito tocados na Rádio Mundial que era o must da época (casa do Big Boy, entre outros). Concorria na faixa de Bob Dylan, só que era um gatinho e inglês, o que lhe aumentava o charme. Mas acho que a indústria resolveu investir mais em Dylan, talvez porque Donnovan enburacou nas drogas. Já ouvi alguma coisa parecida, mas não tenho certeza. Quando a Irmão Sol, Irmão Lua, vi outro dia e é engraçadinho. Na época, acho que inaugurou o Hippie de boutique. Com tods respeito. Mas seu texto é, como sempre ótimo.