Gurus para exportação: Osho, Sadhguru e sua espiritualidade descontextualizada
Apesar de usarem Rolls-Royces ou motos radicais para se promoverem, a falta de mediação editorial e digital transforma sua sabedoria em risco.
1. A figura do guru entre o Oriente e o Ocidente
Boa parte das religiões institucionalizadas se organiza em torno de uma figura de autoridade espiritual. Essa figura funciona como intermediária entre um poder superior (que pode ser chamado de Deus, consciência suprema, Eu superior, dentre outros nomes) e o mundo humano. No Oriente, essa função é frequentemente desempenhada pelos gurus. Além dos grandes fundadores (como Buda, Lao Tse ou Bodhidharma), é comum que essas tradições se mantenham vivas através de mestres posteriores, que adaptam os ensinamentos aos seus tempos.
No século XX, dois gurus indianos se destacaram tanto pelo carisma quanto pelas controvérsias: Bhagwan Shree Rajneesh (posteriormente conhecido como Osho, falecido em janeiro de 1990) e Jaggi Vasudev (Sadhguru, 67 anos, ainda em atividade). Apesar de não pertencerem à mesma tradição, ambos se tornaram figuras globais, cada qual com uma abordagem singular, mas com elementos que permitem uma comparação reveladora.
2. Formação, estilo e linhagem
Osho, nascido Chandra Mohan Jain, formou-se em Filosofia pela Universidade de Sagar e atuou como professor universitário antes de se dedicar à vida espiritual. Sadhguru também teve formação superior, tendo estudado Literatura Inglesa na Universidade de Mysore. Esse dado é relevante, pois difere do perfil de outros mestres indianos famosos, como Ramana Maharshi e Sri Ramakrishna, que tinham formação escolar muito limitada ou inexistente.
A presença universitária se reflete na retórica sofisticada e no vocabulário amplo de ambos. Suas falas têm um apelo intelectual que dialoga tanto com o Ocidente quanto com a juventude indiana urbanizada. No entanto, a linhagem e o estilo de cada um divergem bastante: Osho era eclético, iconoclasta, e abordava tradições como o Zen, o Tantra e o Cristianismo de forma provocadora. Sadhguru, por sua vez, está mais alinhado à tradição do Yoga clássico e do Shaivismo, com foco na prática sistemática e na disciplina interior.
3. Estratégias de visibilidade e marketing espiritual
A diferença entre Osho e Sadhguru também se manifesta nas estratégias de visibilidade que adotaram. Osho optou por uma abordagem provocadora: fazia aparições públicas com joias caras, vestes exuberantes e chegou a possuir uma coleção de 93 Rolls-Royce. Sua justificativa era que o contraste entre espiritualidade e materialidade servia como um estímulo à consciência, e usava dos princípios da Gestalt para romper com a imagem do guru asceta.
Sadhguru seguiu por outro caminho. Aproveitando o crescimento da internet, construiu uma presença digital marcante através da Isha Foundation. Sua imagem é mais sóbria, alinhada com o arquétipo tradicional do yogi, mas incorpora elementos midiáticos como as motocicletas, que usa em campanhas globais e em vídeos promocionais. Esses recursos o tornaram um guru com forte apelo entre os jovens e com influência crescente em eventos internacionais e políticos. Enquanto Osho optava por chocar, Sadhguru preferiu se integrar ao discurso contemporâneo.
4. A autoria dos discursos e a natureza da fala espiritual
Os livros cuja autoria é atribuída a Osho ou Sadhguru não foram, de fato, escritos por eles: consistem de falas transcritas (ainda que Sadhguru tenha um ou dois livros supostamente escritos). Os textos são registros de satsangs, palestras e encontros com um público ouvinte. Esses discursos não são roteirizados: segundo os próprios mestres, surgem da interação com a plateia e da conexão com planos mais sutis de consciência.
Os temas das falas de ambos são bem diversos, variando de acordo com a plateia, a região, o contexto, a data, etc. Muitos admiradores e seguidores dos dois mestres acreditam que o ecletismo e a vasta bagagem cultural em seus discursos é uma qualidade, e não um problema.
5. Osho no Brasil: os efeitos da leitura descontextualizada
Várias editoras publicaram livros do Osho no Brasil. As iniciativas mais recentes (de editoras como Planeta, Madras ou BestSeller) fazem recortes bem específicos das falas do guru, com obras que apresentam um apelo mais comercial. Apesar de se parecerem com típicas publicações de autoajuda, eu diria que há um bom trabalho editorial por trás.
Mas os livros do Osho começaram a circular com força no Brasil bem antes, ainda nos anos 1990, através de publicações que não traziam notas explicativas ou prefácios que contextualizassem os discursos. O resultado foi a exposição de leitores leigos a ideias radicais, muitas vezes desconectadas de uma base cultural que permitisse sua elaboração.
Ao longo dos anos, presenciei (ou ouvi falar de) situações desagradáveis em torno desses livros mais antigos do Osho. Me refiro a pessoas que, após o contato com essas obras, experimentaram colapsos emocionais terríveis. Além de tantas histórias alheias, eu mesmo tive episódios de depressão em meus vinte e poucos anos, e tenho convicção de que os livros do Osho foram o estopim dessas crises.
Conheci certa vez uma pessoa que passou dois anos reclusa em seu quarto, incapaz de enfrentar o mundo após mergulhar em textos do guru. Outro amigo meu que leu esses livros ficou um bom tempo sem sair de casa – em certa ocasião, esse amigo tentou se desafiar indo até a padaria, e tanto eu quanto outros fomos como acompanhantes. No meio do caminho, ele sentiu um medo paralisante, e tivemos que retornar para sua casa amparando-o nos ombros.
O fato é que as ideias do Osho podem ser muito desestabilizadoras para pessoas que cresceram em uma cultura ocidental. Tenho uma teoria para explicar essa abordagem: em vários dos livros do guru, há um temor excessivo de que o fim do mundo estaria próximo. Creio que, por acreditar nisso, ele utilizou de práticas avançadas do Tantra para tentar provocar um despertar espiritual coletivo, sem se importar que algumas pessoas enlouquecessem no caminho.
Vários de seus discursos são inspiradores, alguns estão entre os textos espirituais mais belos que já li. Mas o ecletismo excessivo e a radicalização das práticas me parecem ser uma combinação perigosa. Uma xamã amiga da minha família lamentou certa vez sobre um homem que conheceu na década de 1980, que largou sua vida no Brasil e foi para os EUA virar sannyasin (seguidor) do Osho. Depois de seguir fielmente todas as práticas, o sujeito apresentou quadros de confusão mental e acabou sendo internado em um sanatório.
Na minha adolescência, conheci pessoalmente uma jovem sannyasin – apesar de Osho já ser falecido na ocasião, ela era ligada a grupos do instituto do guru. Extrovertida e festeira, acabou se vendo perdida após adotar aqueles preceitos de maneira radical. Anos depois, a reencontrei como evangélica, declarando ter finalmente encontrado o sentido da vida, isso após ter descrito o que chamou de " vazio existencial” causado pelas práticas do antigo mestre.
No fim das contas, o conteúdo dos discursos que chegaram à maioria das pessoas através dos livros tem trechos realmente valiosos para qualquer buscador espiritual. Mas a forma muitas vezes descontextualizada como foram introduzidos, sem mediação ou preparação, causou sofrimento real a pessoas em situação de vulnerabilidade.
6. O risco da repetição: Sadhguru e a era do algoritmo
Com Sadhguru, observa-se um movimento semelhante, agora potencializado pela internet. Seus canais oficiais trazem dezenas de vídeos com orientações que, isoladas de contexto, podem ser perigosas. Há recomendações como ter uma vida saudável se alimentando apenas de amendoins, ou afirmações de que certas meditações curam doenças graves. Também surgem temas polêmicos, como alienígenas, realidades paralelas, e a crença de que vivemos em uma simulação.
A diferença é que, hoje, esse conteúdo é amplificado por algoritmos, viraliza em redes sociais, e chega a públicos muito mais diversos e fragmentados. A ausência de curadoria segue como um problema central.
7. Conclusão: entre a sabedoria e o risco, segue a importância da mediação
Tanto Osho quanto Sadhguru têm muito a oferecer em termos de provocação espiritual, reflexão filosófica e questionamento existencial. No entanto, o modo como seus discursos são apresentados ao público — muitas vezes descontextualizados, sem mediação ou responsabilidade editorial — transforma palavras de sabedoria em armas de desestabilização emocional.
Para a formação de leitores e buscadores mais críticos, precisamos mais que nunca de editoras conscientes e de plataformas que compreendam o peso (e a responsabilidade) de difundir mensagens espirituais para um público tão vasto e diverso, muitas vezes despreparado para algumas dessas ideias.