Live Aid: o festival que mudou o mundo (mas quase não deu certo)
Realizado há quatro décadas, o evento marcado por controvérsias foi uma verdadeira façanha técnica.
Há quarenta anos, no dia 13 de julho de 1985, foi ao ar o Live Aid, o primeiro evento musical verdadeiramente global e multiplataforma. Mais do que um show beneficente, o festival provou que era possível alinhar as utopias da arte, o impulso da filantropia e o poder de mobilização da grande mídia em escala planetária.
Quatro décadas depois, seus números ainda impressionam. A transmissão ao vivo alcançou cerca de 150 países, sendo assistida por mais de 1,5 bilhão de pessoas, um feito inédito para a época. Artistas de todo o mundo, governos e milhões de espectadores se uniram numa ação humanitária contra a fome na Etiópia, sem precedentes em abrangência e engajamento. Se hoje em dia concertos como o Back to the Beginning (que marcou a despedida do Black Sabbath) conseguem arrecadar mais de um bilhão de reais, é porque o Live Aid abriu esse caminho, dando um novo sentido ao que um festival de música poderia ser.
Mas, como diz o velho ditado, depois que a criança cresce e prospera, todo mundo quer ser pai. O que pouca gente lembra é que o Live Aid tinha tudo para dar errado: uma série de iniciativas anteriores haviam falhado ou tropeçado na burocracia, artistas hesitavam em participar, os custos eram altíssimos, e a liderança do projeto estava nas mãos de um roqueiro irlandês com fama de excêntrico e intempestivo.
Então, como um evento que parecia fadado ao desastre acabou se tornando um marco na história da música, da mídia e da ação humanitária? Para entender isso, é preciso olhar para o caos criativo por trás dos bastidores, e para a figura central que o impulsionou.
Um punk, uma ideia e nenhuma permissão
Bob Geldof não era um astro do rock no mesmo patamar de Mick Jagger, Freddie Mercury ou David Bowie. Era líder do obscuro grupo Boomtown Rats, e até chegou a emplacar alguns hits no Reino Unido, mas o cantor era mais conhecido por seu temperamento explosivo do que pela música. Ao interpretar o roqueiro Pink no filme The Wall, do Pink Floyd, muita gente achou que o artista provavelmente era tão excêntrico quanto o personagem.
Ninguém imaginaria que, por trás do estilo histriônico, Geldof trazia consigo um desejo de usar sua persona pública para mudar o mundo de alguma forma. Certo dia, ele estava em casa assistindo um documentário da BBC sobre a fome na Etiópia, quando se viu profundamente emocionado e indignado com tudo que viu. Como essa declaração de uma enfermeira que era obrigada a escolher quais crianças teriam acesso aos limitados suprimentos de comida e quais seriam deixadas para morrer:
"Há milhares de pessoas do lado de fora. Eu contei 10 fileiras, e cada fileira tem mais de 100 pessoas, e eu só posso levar de 60 a 70 crianças hoje, mas todas elas precisam entrar”.
- Relato da jovem enfermeira Claire Bertschinger que estava cercada por 85.000 pessoas famintas, e precisava decidir sozinha quais seriam salvas.
Nasceu então a ideia de juntar os maiores artistas do mundo em um concerto beneficente, com a finalidade de arrecadar fundos para tentar minimizar o problema da fome na Etiópia. Poderia ser apenas um delírio que você comenta com os amigos no botequim, dizendo que “seria ótimo se alguém levasse essa ideia adiante”. Bem, Bob Geldof achou que era “o” alguém.
Só que havia um problema – ou vários. Geldof não tinha dinheiro, não tinha apoio governamental, não tinha um plano sólido, mas apenas uma urgência moral que lhe tirava o sono. Na verdade, uma das características que as pessoas consideravam irritantes no cantor irlandês acabou se mostrando redentora para o sucesso de seu projeto: a capacidade de persuadir e insistir até o limite da razoabilidade. Bob ligava para produtores, gravadoras, rádios, artistas. Quando diziam "não", ligava de novo. Contam que, ao convencer a BBC a transmitir o show, ele disse algo como: “Se vocês não transmitirem isso, nunca mais poderão usar a palavra ‘humanitário’ com credibilidade.”
Além da insistência, o gerente de produção do Live Aid, Andy Zweck, disse que "Bob teve que pregar algumas peças para envolver os artistas. Ele ligava para Elton (John) e dizia que ‘o Queen está dentro e Bowie está dentro’. E é claro que eles não estavam. Então depois ele ligava para Bowie e dizia que Elton e Queen estavam dentro. Foi um jogo de blefe."
Assim, de empurrão em empurrão (e uma dose de malandragem), o Live Aid começou a ganhar forma. Os estádios Wembley (em Londres) e JFK Stadium (na Filadélfia) foram reservados. Sim, Geldof não pensava pequeno, e sua ideia megalomaníaca incluía um festival simultâneo em dois continentes.
Artistas como Queen, U2, Elton John, Madonna e Paul McCartney toparam participar. Era como se todos soubessem que estavam diante de algo maior do que um show, embora nem todos soubessem exatamente o quê.
Os festivais antes do Live Aid
Existem festivais de música pelo mundo há tempos (de acordo com registros, desde o século XVIII, pelo menos). Mas foi na década de 60 que se inaugurou um modelo de festival de massa, no qual o sentido de comunidade gerado pela música se somou à contracultura que emergia na época. O Monterey Pop Festival, de 1967, foi considerado o primeiro grande festival de rock moderno. Além disso, tanto o primeiro Woodstock (1969) quanto as primeiras edições do Isle of Wight Festival (1968-70) se tornaram marcos simbólicos da era hippie. Foram iniciativas com enorme sucesso de público, mas o desafio logístico era imenso: o Woodstock, por exemplo, não gerou lucro, apesar de seu enorme alcance ao longo dos anos.
Seria só em 1971 que alguém considerou a ideia de realizar um festival com finalidade beneficente, e a ideia não partiu de um produtor – mas, como no caso do Live Aid, veio da cabeça de um artista indignado. Na época, George Harrison já não fazia mais parte dos Beatles, e se uniu ao amigo e parceiro Ravi Shankar para realizar The Concert for Bangladesh. A iniciativa, que visava arrecadar fundos para os refugiados paquistaneses, se tornou o primeiro show de rock com fins beneficentes de grande escala.
Um público de quarenta mil pessoas lotou o Madison Square Garden, para assistir apresentações de Eric Clapton, Leon Russell, Ringo Starr, Bob Dylan ou do próprio George Harrison. O sucesso artístico foi imediato, e, do ponto de vista financeiro, a princípio pareceu também dar certo. O show rendeu 250 mil dólares (em valores da época) e mais alguns milhões depois que lançaram o registro em disco.
Entretanto, os valores do show ficaram retidos por anos devido à falta de estrutura legal para doações internacionais. Harrison ficou desapontado com a morosidade do processo e o descaso governamental. Além disso, seu empresário na época, Allen Klein, não teria contabilizado todos os lucros e até embolsado parte do dinheiro.
No fim das contas, a arrecadação foi eventualmente repassada à UNICEF, mas levou mais de uma década. Por ironia do destino, apesar do show de Harrison ter acontecido em 1971, apenas em 1985 (na véspera do Live Aid) é que esses valores realmente foram parar em Bangladesh. De acordo com um jornalista do Los Angeles Times, Bob Geldof chegou a conversar com George Harrison, e o ex-beatle lhe deu "conselhos meticulosos" para garantir que a arrecadação do Live Aid realmente alcançasse às vítimas da fome na Etiópia.
Shows lendários e infames
Após resolver inúmeros entraves burocráticos, logísticos e estruturais, Bob Geldof conseguiu ver sua ideia tomar corpo. O Live Aid alcançou a impressionante marca de 32 horas de apresentação – 16 horas em cada um dos dois estádios nos quais o evento aconteceu.
Seria difícil comentar cada uma das apresentações do evento, pois foram muitas. Mas algumas se destacaram, seja pela qualidade artística (se tornando icônicas ao longo do tempo), por terem gerado situações engraçadas, detalhes curiosos, ou até mesmo por renderem desdobramentos bizarros.
Precisamos começar aqui falando da apresentação do Queen em Wembley, que se tornou praticamente sinônimo do Live Aid. Apesar de ter durado apenas vinte e um minutos, uma pesquisa de 2005 a elegeu como a maior apresentação ao vivo da história do rock. Para o apresentador David Hepworth, a performance produziu "a maior exibição de canto comunitário que o antigo estádio já viu, e cimentou a posição do Queen como o grupo britânico mais amado desde os Beatles". A apresentação foi recriada na íntegra na cinebiografia Bohemiah Rhapsody, e é um ponto alto do filme.
Outros shows de destaque foram o de David Bowie e da banda irlandesa U2. No caso do U2, além de contribuir com as vítimas da Etiópia, o vocalista Bono literalmente salvou a vida de uma mulher durante o show. Foi quando a banda executava a canção "Bad", e uma fã estava literalmente sendo esmagada pela imensa massa de pessoas. Do palco, Bono avistou a dramática cena e gesticulou freneticamente para que os guarda costas a ajudassem, mas eles não entenderam o que o cantor dizia. Foi quando ele tomou a corajosa decisão de saltar na plateia, juntando-se à multidão e agarrando a adolescente, que subiu com ele no palco para dançar.
Outro detalhe curioso envolveu a pressão dos organizadores para convidar algum ex-integrante dos Beatles (algo que daria uma imagem de prestígio ao festival). Quem acabou aceitando foi Paul McCartney, que confessou ter sido convencido a participar por sua “gerência” (seus filhos). Ele foi o último artista a tocar, e um dos poucos a sofrer falhas técnicas por conta de um microfone pifando bem quando ele tocava a icônica canção “Let it Be”. Mais tarde, Paul relevou o episódio afirmando que havia pensado em mudar a letra para “There will be some feedback, let it be” (“haverá algum feedback, deixa pra lá”).
Houve também quem se destacasse simultaneamente por razões tanto louváveis quanto infames. Como Phil Collins, que parecia ser o mais motivado dos músicos naquele festival. Ele conseguiu a façanha de se apresentar no Estádio de Wembley e também no JFK, feito que levou seu nome para o livro dos Recordes Guinness. Viajando de Wembley de helicóptero para o aeroporto de Heathrow, em Londres, Collins pegou um voo Concorde da British Airways para a cidade de Nova York, e depois um outro helicóptero para a Filadélfia, conseguindo chegar a tempo nas duas edições.
Além de fazer duas apresentações solo elogiadas, Phil tocou piano no show do Sting, tocou bateria no show de Eric Clapton, e, como se isso já não fosse imensamente louvável, ele ainda foi convidado para tocar bateria no retorno do Led Zeppelin com os três integrantes sobreviventes do lendário grupo. Tudo indicaria que seria um dia inesquecível na carreira de Collins…
…exceto pelo fato de que o show com o Zeppelin foi um desastre. Era a primeira apresentação da banda desde a morte de John Bonham em 1980. A ocasião trazia enorme dose de tensão, e cada um dos envolvidos reagiu de um modo. A voz de Robert Plant foi tomada por uma rouquidão terrível, e Jimmy Page apareceu não apenas com a guitarra desafinada, mas também visivelmente embriagado. Além disso, os monitores de retorno não funcionaram bem, e os músicos mal se ouviam. Após o show, Page culpou Phil Collins pela performance infeliz, mas a verdade é que muitos fatores contribuíram para que um dos shows mais esperados da história do rock fosse um fiasco.
Quem também atraiu polêmicas terríveis foi Bob Dylan. Em dado momento de sua apresentação na Filadélfia, ele me solta essa: "Espero que parte do dinheiro arrecadado para as pessoas na África, talvez um ou dois milhões, possam ser usados para pagar as hipotecas de algumas das fazendas que os agricultores aqui (dos EUA) devem aos bancos".
A declaração foi recebida por jornalistas e parte do público como sendo insensível com a situação da Etiópia. Contudo, colegas de Dylan como Willie Nelson, Neil Young e John Mellencamp acharam que era uma observação interessante. Eles criaram uma instituição de caridade chamada Farm Aid, que realizou seu primeiro show em setembro de 1985. O concerto inaugural arrecadou mais de US$ 9 milhões para os agricultores familiares da América, e acabou se tornando um evento anual.
E valeu a pena?
A arrecadação do Live Aid foi massiva e rápida. Algumas ações foram realmente eficazes, como o envio imediato de alimentos e medicamentos, além do financiamento de projetos locais sustentáveis na Etiópia. Porém, investigações posteriores mostraram que parte dos alimentos foi confiscada por milícias ou governo etíope (regime de Mengistu Haile Mariam), e houve também uso político da ajuda – em alguns casos, envolvendo até mesmo compra de armas com alimentos recebidos.
A BBC publicou em 2010 um documentário sugerindo que grande parte do dinheiro do Live Aid foi desviada para fins militares. Bob Geldof contestou com veemência, mas a dúvida sobre a efetividade da ajuda permanecia viva. Mesmo assim, o Live Aid mobilizou consciências globalmente, além de inspirar uma cultura de solidariedade midiática e criar um modelo de ação coletiva global.
Após 1985, vários eventos foram claramente inspirados ou viabilizados pelo precedente do Live Aid. Como o já citado Farm Aid, ou o Live 8, de 2005, organizado novamente por Bob Geldof, que pressionou os líderes do G8 a perdoarem dívidas dos países mais pobres (e que realizou a façanha de reunir os integrantes da formação clássica do Pink Floyd pela última vez). Podemos lembrar também do Freddie Mercury Tribute Concert (1992), transmitido globalmente, com foco na conscientização sobre HIV/AIDS. E, a partir de 2012, o Global Citizen Festival iniciou uma série de shows anuais com foco em erradicar a pobreza extrema.
No Brasil, muitas pessoas pensam erroneamente que o Live Aid teria influenciado o nosso Rock in Rio, mas isso não é verdade. O evento brasileiro aconteceu em janeiro de 1985, antes, portanto, do Live Aid. No entanto, em edições posteriores, o Rock in Rio passou a incorporar ações sociais e discursos de cidadania, o que pode ter sido, sim, influenciado pelo espírito que o Live Aid consolidou.
Quarenta anos depois, o Live Aid é visto como uma façanha técnica, um gesto coletivo de esperança e ao mesmo tempo como um espetáculo sujeito às limitações e contradições do mundo real, onde boas intenções nem sempre garantem bons resultados. Sua importância histórica não está apenas nos milhões arrecadados, mas na maneira como reconfigurou o papel da música popular na esfera pública.