No capitalismo, o copo nunca está cheio
O desejo de superar a própria finitude nos trouxe a um sistema desastroso.
Querer superar os próprios limites é algo próprio do ser humano? Nem preciso citar aqui inúmeros filósofos ou pensadores para provar que, sim, estamos sempre buscando maneiras de ir além de nós mesmos. Contudo, esse desejo de superar a própria finitude precisa ser devidamente analisado – afinal, como dizia Carl Jung, os fenômenos da vida possuem uma dualidade inerente, onde nada é totalmente bom ou ruim, mas ambos em paralelo. E você provavelmente vai concordar comigo que essa atitude de ir além dos próprios limites pode facilmente se converter em uma neurose perigosa.
A premissa que quero defender aqui é que essa atitude esquizofrênica ou prepotente de ignorar limitações de maneira inconsequente é, basicamente, a maneira como o capitalismo funciona. Nós, humanos, poderíamos ter criado um sistema baseado no lado mais rico e interessante de querer superar nossas limitações: um sistema lúdico, criativo, e também cooperativo. Mas nosso sistema se baseou no polo negativo desse aspecto.
E fazemos de tudo para evitar pensar sobre os problemas do capitalismo, sobre o fato de nós, enquanto sociedade, termos escolhido viver sob um sistema perverso. Será que escolhemos mesmo? A maioria de nós, quero dizer. A culpa dessa falta de reflexão não é nossa. Aqueles que realmente dão as cartas (chame-os de “burguesia”, “elite”, “donos dos meios de produção”, o que for) fazem de tudo para nos manter distraídos. Eles acreditam que pensar de menos é sinônimo de consumir mais.
Nesse sentido, a melhor maneira de identificar um defensor do capitalismo é pela recusa taxativa em analisar os meandros do sistema. Vão te dizer que as coisas são assim mesmo, e pronto. Para que discutir de onde vem o azul do céu? É azul e pronto. Da mesma forma, o capitalismo é o regime econômico no qual vivemos, e nada mais importa. Por que você está repetindo que o capitalismo tem apenas 260 anos (contando a partir da invenção da máquina a vapor por James Watt em 1765, ou seja, o início da Revolução Industrial)? Isso não importa, dizem eles, é um dado insignificante.
Bem, o capitalismo não nasceu com a humanidade. Dizemos que algo é “natural” ou é “nato” quando sempre existiu, mas, mesmo quando se trata da natureza, nós pensamos sim sobre ela (e todo o campo das ciências biológicas ou naturais trata exatamente disso). Nem sempre fomos regidos pelo capital. Com muita boa vontade, podemos dizer que o capitalismo teria cerca de 600 anos (e quem diz isso é Marx, ao situar a transição da Idade Média para a Idade Moderna no século XIV como o “marco zero” de um sistema mercantilista ainda vigente). Mesmo que seu lastro temporal seja de seis séculos, ainda assim isso não torna o capitalismo imune a críticas e análises.
Se quisermos ser criteriosos na tarefa de refletir sobre um objeto qualquer, precisamos de uma metodologia, e temos tantos métodos quanto áreas diferentes de estudo para utilizar. O capitalismo é quase sempre estudado no âmbito econômico, e aqui poderíamos citar inúmeras teorias e teóricos dedicados ao tema. Karl Marx afirmava que o capitalismo se caracteriza pela acumulação de capital (“dinheiro”) por parte dos proprietários dos meios de produção (os “patrões”), e depende da extração de mais-valia (“lucro”) do trabalho dos proletários (“trabalhadores”).
Mesmo dentro do campo econômico, temos outras perspectivas, como a de Friedrich Hayek (que pensa no capitalismo como um sistema espontâneo e descentralizado de preços e informações) ou Joseph Schumpeter (que vai falar de um sistema caracterizado por rupturas, cujas transformações implicam ora em progresso ou ora em crise), para citar apenas duas. Há também as célebres interpretações sociológicas, com a de Max Weber (relacionando a ética protestante com o capitalismo) ou a de Pierre Bourdieu (que assinala as diferentes “faces” do capital, econômicas, culturais, simbólicas, sociais, todas geradas para reproduzir desigualdades).
Poderia citar aqui várias outras interpretações, sejam elas históricas (como a de Fernand Braudel ao falar dos “ciclos”), filosóficas (a alienação assinalada por Marcuse, por exemplo), e outras. Mas quero destacar aqui uma perspectiva filosófica em especial, defendida pelo filósofo Friedrich Nietzsche, algo que, a princípio, parece tratar apenas de nuances da alma humana. Só que, vistas em profundidade, essas ideias explicam também a existência do capitalismo de maneira exemplar.
Em obras como Assim Falava Zaratustra, Nietzsche propõe que "o homem é algo que deve ser superado", ou seja, o ser humano está em constante transformação, sempre desejando ir além de suas limitações. Ele propõe o conceito do Übermensch (além-do-homem), que é uma forma de transcendência, onde o desejo humano de superar sua condição se realiza.
Esse tema da eterna insatisfação humana retorna em várias das principais obras do filósofo alemão. Em A Gaia Ciência, Nietzsche apresenta um dos seus conceitos mais famosos: o do eterno retorno, em que a existência pode ser vista como um ciclo infinito, e cabe ao ser humano afirmar a vida com todos os seus desafios, projetando sentido em sua finitude. E que sentido seria esse? Em Humano, Demasiado Humano, o filósofo questiona se, por trás de toda busca, não estaria o desejo por eternidade — não uma eternidade literal, mas uma eternidade de significado e impacto.
Portanto, para Nietzsche, os desejos do ser humano ultrapassam seus próprios limites e sua condição intrínseca de finitude. Esse foi o tema da palestra “Entre o céu e o inferno: atualizando interpretações”, ministrada recentemente no ICL pelo teólogo Leonardo Boff. Diz Boff:
“O ser humano é um ser de desejo e esse desejo não tem limites. Já dizia Aristóteles ou Freud que queremos isso, aquilo, queremos crescer, ter uma casa, um carro, casar… e nunca se está satisfeito.
O ser humano é um eterno protestante, quer empurrar os limites para frente. (…) E o nosso desejo, de acordo com Nietzsche, é querer a imortalidade humana. (…) Somos um ser de desejos, um projeto infinito. (Mas) só encontramos (coisas) finitas, como uma casa, um carro, uma esposa querida, um marido bom, os filhos bem educados. (…) (Entretanto) queremos mais, não estamos nunca saciados”.
Para Nietzsche, o desejo humano não configura apenas uma função psicológica ou emocional, mas uma manifestação de forças instintivas que orientam a vida. Nesse caso, o desejo estaria contido no que ele chama de “vontade de poder” (wille zur macht). Como define na sua obra Além do Bem e do Mal, "onde encontrei o vivo, aí encontrei a vontade de poder." O desejo, nesse caso, é mais profundo do que as simples necessidades biológicas: é um instinto de criação e transcendência.
Nesse sentido, retornamos ao tema do capitalismo como sendo (dentro da perspectiva nietzschiana) a cristalização de uma demanda interior do próprio ser humano. Em tese, existem várias maneiras positivas de superar a condição intrínseca de finitude – como, por exemplo, escrever um livro ou produzir uma obra de arte. São feitos capazes de deixar um legado duradouro e inspirador para gerações vindouras. Fazer boas ações ou ajudar o próximo também podem ser consideradas maneiras de promover um efeito para além de si mesmo, através de acontecimentos construtivos para outras pessoas.
Mas e quando pensamos na face inconsequente do capitalismo, que reproduz suas práticas como se o planeta fosse realmente infinito? Citarei aqui um único exemplo (dentre tantos possíveis) para ser mais preciso sobre o que quero dizer: apenas pense que, se todas as cidades do mundo gastassem tanta energia elétrica quanto Las Vegas (EUA), precisaríamos de seis planetas, tamanha a quantidade de recursos envolvidos na manutenção daquela estrutura gigante de luzes e máquinas. Entretanto, os Faria-Limers continuam acreditando que o padrão de vida norte-americano é algo replicável para todos os países do mundo.
Nesse sentido, a visão do capitalismo como propagada por pensadores contemporâneos como Ailton Krenak é muito mais razoável sobre os efeitos nefastos desse sistema. Para ele, a atitude capitalista de crescer inconsequentemente é um verdadeiro “pensamento mágico”, que busca uma justificativa em si mesmo, e por isso é mágico: faz promessas que não podem ser cumpridas à longo prazo. Para Krenak, o ser humano capitalista é “uma praga do planeta, uma espécie de ameba gigante”. O “clube seleto da humanidade” composto pela elite mundial “vem devastando tudo ao seu redor”, diz o pensador indígena, de modo que se perde a noção do Planeta Terra como um organismo vivo. E arremata: “temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver”.
Outro importante pensador indígena (constantemente citado por Krenak) é Davi Kopenawa, que vislumbra o atual estágio do capitalismo como uma verdadeira “queda do céu”. Nesse sentido, se todo fenômeno apresenta uma dimensão boa e ruim em paralelo, precisamos pensar que a necessidade humana de buscar superar sua finitude precisa ser relativizada.
Mesmo que a humanidade tivesse sido capitalista desde a era das cavernas (ao ponto de podermos dizer que esse é um sistema “universal” ou “nato”), ainda assim ele mereceria ser foco da nossa reflexão e questionamento. Querer viver além dos próprios limites não é algo indigno por si só – a diferença está em como isso será feito. Não é justo que uns paguem pela satisfação dos desejos dos outros. A vontade de poder deve ser exercida para o bem comum. O discurso de pensadores contemporâneos como Leonardo Boff, Ailton Krenak ou Davi Kopenawa nos coloca essa reflexão inescapável, sobre como podemos ser responsáveis com nosso desejo de ir além do que está posto.