O artista, o menino e a garça
Comentários sobre o (suposto) último filme de Hayao Miyazaki com o Studio Ghibli, que também foi tema de documentário da Netflix.
1.
Na infância, eu era um devorador de desenhos animados, assistia todos que passavam diante dos meus olhos. Mas, com o passar dos anos, apesar de manter meu entusiasmo (e prática) com as histórias em quadrinhos, fui me empolgando cada vez menos com animações – sobretudo com os animes japoneses. O último que provavelmente assisti com algum interesse foi Dragon Ball Z, e isso há mais de vinte anos.
Até que descobri as animações do Studio Ghibli, e a sensação foi a de encontrar um tesouro. Eu incluiria O Serviço de Entregas da Kiki, Meu Amigo Totoro, Ponyo, O Castelo no Céu ou Conto da Princesa Kaguya como alguns dos melhores filmes que já assisti. Em todos os aspectos técnicos que envolvem a produção de uma animação – construção de personagens, roteiro, ilustrações, trilha sonora, conceito –, nada nos filmes do Studio Ghibli é menos que primoroso, eu diria.
2.
No início de 2025, separei um fim de semana para assistir dois filmes em sequência. O primeiro deles é O Menino e a Garça (2023), tido como o último filme do Studio Ghibli dirigido por seu principal diretor, Hayao Miyazaki. O segundo é Hayao Miyazaki e a Garça (2024), documentário que aborda os bastidores dessa derradeira obra do diretor.
O Menino e a Garça quebra um jejum de 11 anos do próprio Miyazaki em relação aos longa-metragens. Quando o diretor fez Vidas ao Vento (2013), ele chegou a anunciar sua aposentadoria, mas acabou voltando atrás para realizar seu novo filme, que levou sete anos para ficar pronto – e que, de acordo com o produtor Toshio Suzuki, é o filme mais caro já produzido no Japão.
Ou seja, todo o contexto em torno da obra me fez criar uma grande expectativa – e tristemente devo dizer que não foi cumprida. O Menino e a Garça acabou entrando para uma lista de filmes do Studio Ghibli que não me empolgaram, como O Reino dos Gatos (2002) ou Contos de Terramar (2006).
Isso, claro, não quer dizer que eu considere ser um filme ruim. O Menino… tem todos aqueles elementos técnicos que consagraram as animações do estúdio, só que com um grau de refinamento proporcional ao que a ocasião pedia: já que Miyazaki decidiu que seria seu último filme, que fosse uma obra inesquecível. A produção é realmente de alto nível.
Apesar disso, não me senti tão cativado quanto em outras obras do diretor ou de seus parceiros no Studio Ghibli. Existe um tom geral bem sombrio no filme como um todo, e talvez venha daí o meu incômodo. A título de comparação, evoco aqui Conto da Princesa Kaguya (2013), que, mesmo sendo também um filme sombrio e triste, apresenta uma narrativa conduzida com beleza, e, principalmente, com coerência interna.
Mas O Menino e a Garça é mais disperso, fragmentado, e sua melancolia é meio que niilista, com uma narrativa que quase abre mão do sublime e do humor típicos dos filmes Ghibli. Digo “quase” porque podemos detectar algum mínimo lastro de humor no personagem da Garça (baseado no produtor Toshio Suzuki), e também alguns vestígios de aspectos sublimes (penso aqui na cena que mostra como nascem os seres humanos, quem já assistiu saberá do que falo).
Entretanto, o que se percebe no geral é que toda essa opera de tons oníricos e surrealistas é perpassada na verdade por uma angústia sem vetores óbvios de redenção. Nem mesmo a beleza dos cenários foi capaz de me tirar essa sensação. Se você considerar que o universo fantástico em torno do protagonista Mahito é uma espécie de alegoria de suas aflições inconscientes (o que me parece ser uma leitura possível do filme), o resultado inevitável é constatar que o jovem rapaz não tem de fato nenhum amigo “real” no seu entorno.
3.
O sentimento de solidão por trás de O Menino e a Garça fica mais claro quando assistimos o documentário Hayao Miyazaki e a Garça. É quando descobrimos que, inicialmente, o filme se baseava na infância solitária do próprio Miyazaki – que, como Mahito, teve que evacuar da cidade para o campo durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, o pai de Miyazaki, como o de Mahito, trabalhava na fabricação de componentes de aviões de guerra.
Em 2016, quando a produção de O Menino e a Garça iniciou, parecia que o filme se basearia sobretudo nesses dados da infância do próprio Miyazaki. Até que, em 2018, morreu Isao Takahata, um dos fundadores do Studio Ghibli. Esse acontecimento abalou Miyazaki profundamente, uma vez que Takahata era mais do que um mero parceiro do diretor. A melhor maneira que encontrei para comparar a relação dos dois foi pensar em John Lennon e Paul McCartney: dois artistas geniais que viviam em um clima de competição saudável, onde um tentava impressionar o outro com suas criações. A morte de Takahata tirou de Miyazaki essa possibilidade de um diálogo criativo (e crítico).
Ao assistir Hayao Miyazaki e a Garça, eu até cheguei a me sentir constrangido por não gostar tanto de O Menino e a Garça. Porque Hayao Miyazaki realmente sangrou pelo filme. Quem assistiu ao documentário Never-Ending Man, feito pela NHK em 2016, já sabia que Miyazaki entra em “modo obsessivo” quando se dedica a uma animação. Mas, em seu último filme, sua carga de sofrimento hiperfocado parece ter sido elevada a um nível acima do razoável. Isso fica claro já no início do documentário, quando aparece escrito em um quadro na parede do estúdio a frase “acho que estou ficando louco”. O desabafo de Miyazaki era para soar como uma piada, mas quem assiste o documentário inevitavelmente pensará que o diretor flertou gravemente com a loucura.
O paradoxo por trás de O Menino e a Garça é que, apesar de significar uma representação alegórica da infância de Hayao Miyazaki, sua história na verdade adquire o tom emocional da fase final da vida do diretor. Ao longo dos sete anos de produção do longa, ele viu vários dos seus amigos e parceiros de trabalho morrerem, enquanto que ele – fumante inveterado, mal humorado, sedentário, workaholic – continua vivo e em atividade. Longe de qualquer otimismo ou esperança no mundo, seu refúgio no trabalho se baseia na fuga da vida real (que ele considera como sendo “tediosa”). Apesar de ver o presente e o futuro com olhos amargos, Miyazaki é, no fundo, um sísifo que não consegue largar a sua pesada e caudalosa rocha.
Enquanto espectador, creio que meu erro foi o de acreditar que o último filme de Miyazaki seria apenas mais um filme do Studio Ghibli. O que temos ali é uma obra que, apesar de ser fiel à gramática narrativa, visual e técnica do estúdio, essa mesma obra acaba por transcender essa mesma gramática em vários sentidos. O Menino e a Garça talvez pareça meio que claustrofóbico para muitos admiradores do Studio Ghibli, mas, sem dúvida, é um filme que evidencia a maestria de Hayao Miyazaki, entregando um testamento estético de altíssimo nível.