1.
A persona pública de Neil Gaiman é um aspecto que cativa tanto quanto suas obras. O contraste entre o visual sombrio e a postura gentil. Suas roupas sempre pretas e os cabelos despenteados dão credibilidade, fazem parecer que seu universo ficcional não seja só um, vá lá, sonho.
Muita gente pensa que Sandman seria o alter ego do próprio Gaiman, menos pela personalidade de ambos, e sim pela força do estilo. Tudo isso acontece porque Gaiman encarna um perfeito estandarte das próprias histórias. Um Caronte, um guia capaz de conduzir seus leitores pelas águas de universos fantásticos criados pela própria pena.
2.
Parece quase poético definir assim a imagem pública de Neil Gaiman. Mas é importante lembrar que ele atuou como jornalista antes de se despontar como autor de quadrinhos (ele até chegou a publicar uma biografia do Duran Duran!).
Não seria exagero pensar que sua experiência nessa área o ajudou a forjar uma imagem pública cuidadosamente calculada. O contraste do visual soturno com o discurso amigável é uma gestalt perfeita. Entretanto, eu não acreditaria nem por um segundo que essa máscara social surgiu espontaneamente.
3.
No fim das contas, praticamente todos os ídolos das massas são como Gaiman – avatares esculpidos com o intuito de se tornarem verdadeiros mitos, pessoas que parecem maiores que a vida, que trazem consigo um apelo espetaculoso irreal e mágico. Produtores, editores e empresários da indústria do entretenimento sabem que isso vende.
4.
Certa vez, mostrei para um amigo a referência de um artista que eu gostava, e ele disse “nossa, ele parece um bancário”. O artista: um homem de meia idade, calvo, com barriga proeminente. “Não tem cara de artista”, disse o amigo. O problema é que o artista se vestia e se portava como “pessoa normal”.
5.
O público deseja que os artistas pareçam incomuns. Pessoas com aparência de prestadores de serviço não têm graça. O público anseia por qualquer coisa que lhes afaste do cotidiano. A máxima de Guy Debord é cada dia mais imperativa: o espetáculo sempre vence.
Políticos não ganham eleições porque apresentam os melhores planos de governo, mas sim porque agem como verdadeiros palhaços de auditório.
Em tempos como os nossos, a pantomina é o discurso mais persuasivo.
6.
Em nosso tempo, as celebridades são os verdadeiros deuses modernos (inclusive, Neil Gaiman explora um pouco desse conceito em seu romance Deuses Americanos).
A doutrina das religiões (institucionalizadas ou extraoficiais) não ocupam mais um papel central para nós enquanto sociedade. Nosso mundo capitalista é regido pelo materialismo, e nosso deus supremo é o dinheiro. Diferente de tantos povos tribais, nossa política não coincide com nossa cosmogonia.
E, como disse Carl Jung, o ser humano tem uma necessidade psicológica de estruturas religiosas e mitológicas. Na falta de uma religião genuína, tais estruturas serão projetadas em um espaço laico, secularizado.
Nosso imaginário é uma máquina de criar ídolos e mitos – conscientemente ou não, religiosamente/espiritualmente ou não.
7.
As pessoas acham que basta contratar um coach especializado em “arquétipo de marca” (algo que Jung condenaria taxativamente), e, pronto: num passe de mágica, você se torna “maior que a vida”.
O desejo (quase) universal no conectado mundo contemporâneo é ser instagramável.
8.
Por que temos ídolos de estimação? As respostas possíveis são muitas. Inspiração, regulação emocional (através da conexão afetiva), projeção de desejos, oportunidade de acompanhar uma vida de glamour (o que se chama de vicarious living).
Ostentar um ídolo é ostentar uma bandeira. Isso traz inserção em determinados grupos sociais, pode ser símbolo de status. Usar uma camiseta com a foto estampada de um artista ou um personagem se torna uma declaração de identidade – “vejam quem eu sou”.
Nesse sentido, ídolos e personagens representam a mesma coisa: são avatares, símbolos, representam uma torcida, um nicho, são marcadores de identidade. Comunicam algo sobre nós que é mais poderoso semioticamente do que uma declaração de princípios.
9.
Quase todas as pessoas que chamamos de ídolos são, na verdade, apenas a produção de uma peça de marketing. Não temos acesso ao ser real por trás da máscara. Ouvimos uma meia dúzia de lendas sobre a pessoa, nos deparamos com fotos maquiadas no photoshop, e de repente acreditamos ter um vínculo íntimo com a figura.
É como se nossa imaginação criasse gólens: seres de pedra, aos quais atribuímos vida.
10.
A real causa mortis de Raul Seixas, na minha concepção: ele queria ser o “maluco beleza” em tempo integral. Como isso representava um gasto colossal de energia, ele tentou alimentar esse monstro com doses maciças de álcool. A mesma coisa com Vinicius de Morais, que queria ser o “poetinha” 24 horas por dia.
Todos os artistas recebem conteúdos simbólicos de seu inconsciente, e traduzem isso em linguagem estética. Mas eles recebem também intuições sobre sua máscara artística, sua persona de artista. Alguns deles entendem que isso é apenas mais uma ferramenta de trabalho; como vestir um escafandro para mergulhar em si mesmo. Artistas como Raul Seixas ou Vinicius acham que são o próprio escafandro.
11.
Gaiman parece ser do tipo de artista que construiu a si mesmo. Não é (exclusivamente) intuitivo, mas detém autoconsciência sobre como a coisa funciona. Talvez o ofício de jornalista tenha aprimorado sua consciência estratégica, prática. Mas ele também tinha consciência poética e estética do papel do artista (e a conferência “Faça boa arte” é bem eloquente sobre isso).
Na verdade, Gaiman era um criador muito consciente em vários níveis. Tanto é que foi capaz de criar também uma faceta progressista de sua persona, ideologicamente comprometida com as minorias, uma máscara tão convincente que enganou até amigos íntimos (como a cantora Tori Amos, que conviveu anos com o escritor sem suspeitar de suas atitudes privadas).
12.
Na juventude, eu entrei no curso de Letras porque meu sonho era ser escritor e autor de quadrinhos. Eu admirava autores que transitavam entre a literatura e as HQs, gente como Alan Moore ou Neil Gaiman. Sobre esse último, talvez tenha sido o autor sobre quem mais escrevi artigos, e por pouco algumas obras suas não foram objeto de estudo do meu doutorado. Li quase todos os seus livros, e pelo menos um – Stardust – estão entre as obras literárias que mais me marcaram (e até dediquei um texto da newsletter sobre ela).
A matéria da Vulture teria sido bombástica para o meu eu de anos atrás. Mas muita coisa mudou de lá para cá. Uma dessas mudanças é que eu cheguei a conhecer pessoalmente vários ídolos do passado, e alguns se tornaram meus amigos pessoais (obviamente, não me refiro a ídolos estrangeiros, mas criadores nacionais das áreas de quadrinhos, música, cinema, ou do ambiente acadêmico).
A convivência com artistas mostrou que, no dia a dia, você está diante de uma pessoa comum, com necessidades básicas e universais. Alguém talvez cite que existem artistas excêntricos, sei lá, um João Gilberto da vida. Mas existem pessoas excêntricas em qualquer lugar. Já conheci pedreiros excêntricos, professores excêntricos, tão cheios de manias e de pose quanto o mais excêntrico dos artistas.
No movimento cubista, Braque foi tão importante quanto Picasso; mas nos lembramos mais desse último sobretudo por seu jeito espalhafatoso e sua chamativa personalidade pública.
A excentricidade é uma característica superestimada.
13.
Para um jovem, os ídolos podem representar um modelo de vida, uma aspiração, um mapa. Para um adulto, espera-se que, em algum momento, você construa (ou pegue emprestado) seus princípios de vida, e siga em frente assumindo a responsabilidade pelos próprios atos.
Contudo, mesmo para quem já não se sente tão emocionalmente dependente da presença de ídolos quaisquer, ainda assim é difícil lembrar que, por trás dessas imagens arquetípicas, estamos falando de seres humanos. Pode ser que eles nos tragam pequenas decepções. Em alguns casos, eles podem puxar o nosso tapete inteiro com força.
É por isso que tentar manter os pés no chão sempre vale mais a pena.
14.
Não são poucos sentindo que o mesmo Sandman que um dia nos sussurrou sonhos doces agora parece soprar para longe de nós o próprio ato de sonhar. Nesse momento, é importante se lembrar que essas imagens arquetípicas e o próprio ato de sonhar não nasceram com Neil Gaiman. São símbolos e fenômenos que pertencem à humanidade.
Gaiman foi um maestro hábil das histórias, mas é realmente lamentável que não tenha sido responsável com tudo que envolve o papel de Caronte – o barqueiro das palavras. Sua derrocada de homem público nos devolve o desafio de aprender a sonhar de novo, agora por nossa própria conta.