Rush: a banda que muitos amam odiar
Não faltam motivos para as pessoas gostarem ou desgostarem do trio canadense. Mas e se seus detratores estiverem enganados?
Tenho muitos amigos que fazem parte de um clube peculiar: gostam de rock e suas muitas vertentes, mas nutrem um desgosto quase visceral pela banda canadense Rush. Digo “desgosto” para suavizar o que costumam expressar em conversas ou nas redes sociais. Na prática, eles afirmam "detestar", "odiar", "ter asco", e outras expressões menos lisonjeiras. Uma amiga certa vez desenhou a si mesma na parede do quarto regurgitando o nome da banda; algo que traduz muito bem as reações de algumas pessoas sobre eles.
Em alguns casos, eu consigo perfeitamente compreender a razão porque alguém não nutre bons sentimentos pelo Rush. Quem gosta de bandas tradicionais do rock, com instrumentais mais diretos e simples, ou letras que abordam um estilo de vida boêmio e livre geralmente associado ao gênero, talvez considere a proposta do trio um pouco estranha.
Durante décadas, os canadenses foram fieis à sua mistura original de hard rock e progressivo, sempre com um notável apreço pelo instrumental sofisticado e virtuosístico. Suas letras no início traziam enredos de fantasia e ficção científica, mas, ao longo do tempo, deram lugar a reflexões sobre temas mais atuais e que exploravam diversas possibilidades líricas.
A formação definitiva do Rush foi composta por Geddy Lee (voz, baixo e teclados), Alex Lifeson (guitarra e teclados) e Neil Peart (bateria e letras). Apenas o primeiro disco teve outro baterista (John Rutsey). Tiveram períodos de ostracismo e de glória, foram eleitos para o Rock’n Roll Hall of Fame, e são uma referência inescapável para a música popular contemporânea.
Ainda assim, é curioso perceber quantas pessoas que deveriam gostar do Rush acabam por detestá-los, muitas vezes com base em mitos, preconceitos ou experiências mal dirigidas. Esse paradoxo me motivou a escrever o presente ensaio, que quase virou um guia introdutório de audição (algo provavelmente interessante de fazer), mas acabou sendo um compilado de respostas às principais críticas que já li ou ouvi sobre a banda.
1. "Os integrantes do Rush se acham demais"
Essa crítica reaparece com frequência. Muita gente os vê como arrogantes, distantes, “metidos a intelectuais”. Neil Peart, por exemplo, foi inúmeras vezes considerado o melhor baterista do mundo, e sua reputação de “erudito do rock” alimenta ainda mais a suspeita de elitismo.
Mas, sinto dizer aos haters: se há uma banda que transborda sobriedade e humildade no universo do rock, é o Rush. Basta assistir ao documentário Beyond the Lighted Stage (2010) para perceber isso. O jornalista André Barcinski, por exemplo, nunca foi fã do grupo, mas admitiu, após ver o filme, que os integrantes parecem ser pessoas incríveis.
Eles não frequentavam festas, não brigavam em público, não alimentavam rivalidades. Sempre demonstravam reverência aos seus colegas do mundo da música, como se nunca tivessem abandonado o fã anônimo que foram um dia. Geddy, Alex e Neil foram músicos discretos e trabalhadores, quase anacrônicos dentro do showbusiness. Quando finalmente fizeram sucesso, lidaram com a fama de maneira crítica. A canção “Limelight” (do seu mais famoso disco, Moving Pictures), é quase um manifesto sobre os perigos da celebridade.
Prova dessa sobriedade emocional é o fato dessa formação ter se mantido inalterada por tantos anos, com sua química pessoal e musical perfeitamente intacta por décadas. Mas caso ainda reste uma sombra de dúvida sobre os caras serem ou não babacas arrogantes, eu recomendaria que vocês assistissem ao discurso de posse do Rush no Rock’n Roll Hall of Fame – especialmente a fala de Alex Lifeson.
2. "Neil Peart se acha demais"
Qualquer fã que conhece razoalvemente a história do Rush sabe que Neil Peart não buscava reconhecimento para além de sua performance na bateria. A escrita veio por necessidade, pois Geddy e Alex detestavam escrever letras. Apesar de ser um leitor voraz, só em 1996 ele publicou The Masked Rider, seu primeiro livro, narrando uma viagem de bicicleta pela costa africana. Peart modestamente lançou uma tiragem limitada de forma independente, mas sua prosa sensível, articulada e introspectiva acabaria lhe rendendo sucesso de público e crítica. No fim das contas, sua fama como escritor foi um acontecimento tão inesperado quanto bem vindo.
O que Peart sempre desejou de verdade foi ser um trabalhador no mundo da música. Seu estilo arrojado não nasceu pelo desejo de glória, mas pelo temperamento obsessivo e perfeccionista. Ainda assim, é plenamente possível imaginar que ele viveria feliz sendo um músico profissional em uma banda de proposta mais modesta ou convencional. O potencial de Neil na bateria só foi levado às últimas consequências porque seus colegas Geddy e Alex não estavam dispostos a percorrer atalhos ou concessões na busca do som que almejavam.
Apenas pense que, em 1975, produtores e executivos da Mercury Records ameaçaram o grupo da seguinte maneira: se o próximo disco não soasse como o Bad Company (que fazia um hard rock mais comercial na época), eles seriam demitidos. A resposta do Rush foi lançar o disco 2112, cujo lado A era tomado por um épico futurista de vinte minutos. Ou seja, o sucesso aconteceu, apesar do trio não ceder um milímetro sequer em relação a seus princípios.
3. "A voz do Geddy Lee é insuportável"
Em 2024, o cantor brasileiro Ed Motta concedeu uma longa entrevista (mais de 5h de papo!) para o canal Alta Fidelidade. Um dos momentos mais hilários da conversa foi quando ele declarou que decidiu dar uma chance ao Rush, após anos detestando o som dos caras. Deu o play no álbum Hemispheres, de 1978, e até achou o instrumental legal. Porém, quando Geddy Lee entra cantando, Ed diz que “esse cara devia ser proibido até de atender o telefone”!
Na verdade, o lamentável nessa história é que o Ed pegou pra ouvir exatamente o disco menos indicado para quem não gosta dos vocais agudos de Lee. E a razão é que sua faixa de abertura – a ambiciosa “Cygnus X-1 Book II” – foi fruto de um erro logístico.
A banda não fez uma pré-produção que lhes permitiria avaliar o que funcionava ou não funcionava na canção. Simplesmente Peart escreveu a letra e eles gravaram a base instrumental. Só quando Geddy foi ao estúdio gravar seus vocais é que ele percebe, estarrecido, que o tom da música era alto demais, até para alguém que canta tão agudo quanto ele. O vocalista bravamente conseguiu atingir as notas, mas para isso teve que adotar uma voz de castrati, agudíssima. Esse, por sinal, é o motivo da banda nunca ter tocado o longo tema ao vivo.
No próprio filme Beyond the Lighted Stage, os integrantes encaram com bom humor as críticas aos vocais de Geddy. Ele já foi comparado a um balão de hélio, ao Mickey Mouse, e a um rato doutrinando ouvintes. O Pavement chegou a cantar: “What about the voice of Geddy Lee? How did it get so high?”.
Dentro do rock progressivo, existe uma tradição de vozes masculinas agudas, como as de Roger Hodgson (Supertramp), e timbres que por vezes beiram o feminino, como Jon Anderson (Yes). Muita gente não aprecia esses cantores, e tudo bem, gosto é gosto.
Mas é preciso salientar que Geddy evoluiu muito ao longo da carreira. Nos anos 70, sua voz era mesmo rasgada e muito intensa. A partir dos anos 80, ele passou a cantar em registros mais contidos, e, mesmo que possa não agradar a todos, é injusto avaliar sua trajetória por conta uma única fase ou canção.
4. "O Rush é uma banda de direita"
Essa crítica se baseia nas influências da escritora russo-americana Ayn Rand em alguns discos da primeira fase da banda. Para quem nunca ouviu falar da autora, em meados de 1940, Rand foi uma mistura de Paulo Coelho com Olavo de Carvalho: escreveu obras de ficção nas quais desenvolveu um sistema filosófico próprio (o objetivismo), e desde então tornou-se referência para conservadores e reacionários.
Em 2012, Peart declarou numa entrevista que há muitos anos não tinha nada a ver com as ideias de Rand. O que lhe interessou nos livros da autora, além do imaginário de ficção científica, era a defesa apaixonada da liberdade individual. E alguns anos antes, em 2005, o baterista se declarou como sendo um libertário de esquerda, algo que certamente parece bem distante das ideias de Rand (uma defensora do sistema capitalista que considerava o libertarismo como sendo anarquismo, no pior sentido do termo).
Existem várias entrevistas nas quais os integrantes do Rush foram explicitamente favoráveis ao modelo do estado de bem-estar social em vigor no Canadá, sua terra natal. Além disso, Peart era membro da instituição de caridade canadense Artists Against Racism, e sempre expressou suas críticas ao Partido Republicano dos EUA.
5. "Tá, o Rush nem é tão intragável assim. E agora?"
Gostar de uma banda é, muitas vezes, questão de tempo, contexto e disposição. Eu mesmo não consigo ouvir Green Day, por mais que alguns amigos insistam que é legal.
Se alguém me perguntasse porque deveriam ouvir os álbuns do Rush, o que eu poderia dizer? Talvez que se trata de uma banda peculiar de várias maneiras. Os caras rasgaram o manual de regras do rock e do pop, e agiram mais por idealismo que por necessidade de agradar. Fizeram isso com capricho e coerência, pensando mais no resultado final do que na satisfação de seus egos. Foram uma banda honesta e cheia de qualidades. Eles não são para todos, e talvez seja exatamente isso que os torna tão valiosos.
Se você estiver muito desconfiado, comece pelo documentário Beyond the Lighted Stage, e certamente perceberá que os caras, além de serem muito gente boa, superaram poucas e boas ao longo da carreira. Depois, pule os álbuns dos anos 70 e vá direto para Permanent Waves (1980) e Moving Pictures (1981), o auge criativo e técnico da banda.
A fase com sintetizadores nos anos 80 divide até mesmo os fãs fieis, mas a nata desse período está em Power Windows (1985). Em seguida, experimente Counterparts (1993), que mostra porque tantos artistas do grunge veneravam a banda. Por fim, ouça Clockwork Angels (2012), uma despedida densa, pesada e digna de uma banda que jamais se acomodou.
Talvez o Rush seja justamente o oposto do que se espera de uma banda de rock: não são carismáticos de maneira óbvia, não fazem canções fáceis, não posam de rebeldes. Mas é por isso que continuam provocando reações tão extremas. Eles são o raro caso de um trio que fez sucesso contrariando todas as regras. No meio de tantas bandas que soam iguais entre si, o som deles talvez pareça mais especial e original do que nunca.