Sensibilidade digitalizada (ou “só é belo se estiver na tela”)
A tecnologia está nos tirando a capacidade de contemplar?
Esses dias, passeando na cidade mineira de Tiradentes, entrei em uma loja onde, nos fundos, se via um frondoso jardim. Era um espetáculo de exuberância natural, mas nem todos os presentes pareciam muito entusiasmados. Na nossa frente, duas crianças se sentaram naqueles bancos de madeira que imitavam com perfeição os assentos art déco, mas sua atenção não estava nesses caros bancos, e nem nas trepadeiras de maracujá que ornavam o muro de tijolos de pau-a-pique. Seu foco estava unicamente nos aparelhos celulares que manuseavam. A beleza rústica de Tiradentes lhes era completamente alheia.
Hoje em dia, praticamente todas as pessoas estão contemplando o mundo através de telas. Seja um monitor de computador, um pequeno telefone celular, ou uma tela plana em 4K do aparelho televisor. A tecnologia digital tornou-se um “sexto sentido” do homem moderno. Para as pessoas do século XXI, a beleza não é apreciada “grão por grão”, mas “pixel por pixel”.
As pessoas mais velhas, nascidas no século XX, tentam se adaptar a esse novo mundo binário, enquanto os mais jovens já têm sua sensibilidade fundamental moldada no osso. Para a pessoa da contemporaneidade, a beleza precisa ser mediatizada. Precisa estar encapsulada por algum aparelho, precisa ser digitalizada. O mundo analógico, tátil, sensorial, é coisa do passado. Agora, a verdadeira inteligência que cativa a imaginação e a sensibilidade moderna é a inteligência artificial. O yin yang da modernidade são os números 0 e 1 do código binário – a linguagem da informação digital na era da internet.
A sensibilidade digitalizada demonstra uma radicalização da medida de beleza que se acentuou no fim dos anos 80, quando Reagan e Thatcher propuseram um novo mundo neoliberal. A partir daquele ponto, tudo que é digno de beleza é o que pode ser transformado em produto comercializável. Só se aprecia aquilo que está vinculado a uma marca, a uma empresa, a uma franquia.
O século XXI anexa à sensibilidade comercial a possibilidade da digitalização do mundo. Agora, o homem digital interage com a realidade, e a encapsula em seus aparelhos. O homem moderno não apenas é um consumidor, mas ele também tira fotos e posta a respeito de seus hábitos de consumo. Ele pixeliza o seu consumo, acreditando que está realizando uma interação única – quando o que é feito, na verdade, envolve uma repetição em looping da mesma sensibilidade por trás da ação humana em quase todos os lugares do planeta.
Pensei nisso ao voltar de Tiradentes, viajando pela BR 383, e contemplando o céu crepuscular do fim de tarde. Uma tonalidade alaranjada de inverno tomou aquele céu sem nuvens, e as árvores que margeavam a estrada só podiam ser vistas em suas silhuetas retorcidas. Todo o cenário parecia uma versão mineira das obras do pintor vitoriano John Atkinson Grimshaw. Logo me ocorreu que dificilmente uma câmera poderia captar a beleza integral daquela experiência. Nenhum monitor, por mais sofisticado que seja, poderia exibir aquele espetáculo de maneira fidedigna.
Entretanto, a palavra “espetáculo” só é costumeiramente acionada em nossa mente quando nos deparamos com experiências de consumo. Por sinal, “experiência” é um termo muito explorado pelos publicitários contemporâneos. Os jargões e propagandas dizem a todo tempo: “você não está pagando só pela entrada ou pelo objeto, você paga pela experiência”. Eufemismos repetidos acriticamente, moldando lentamente a sensibilidade moderna. Não basta precificar os objetos ou os espaços: o capitalismo neoliberal digitalizado agora quer incutir valor até mesmo na experiência individual. É literalmente impossível arrebatar a subjetividade de cada pessoa e misturá-la com o objeto que se está a vender; entretanto, nada é impossível para o discurso. Basta um mecanismo retórico, e pronto: vende-se uma experiência.
E é assim que chegamos nessa sociedade em que tantas pessoas se dizem deprimidas e sofrendo de burnout. Só se valoriza o que pode ser comprado ou o que pode ser assistido em uma tela. As belezas da vida que chegam espontaneamente até nós são desqualificadas por uma sensibilidade moldada nos hábitos de consumo e de fruição digital. O cérebro moderno tem sido cada vez mais doutrinado a fazer pouco caso do que é gratuito e natural.
O homem moderno não está distante da natureza apenas por causa da poluição ou da arquitetura hostil das grandes cidades. Há, também, um distanciamento de sensibilidade. Na natureza, tudo é abundante, tudo é oferecido sem custo, sem barreiras. Não existe propriedade privada no mundo natural. É por isso que os gatos preferem caixas de papelão do que arranhadores comprados em pet shops caras: eles não entendem a doutrinação da sensibilidade neoliberal. Eles não aceitam o presente caro e a bajulação em torno disso. Eles sentem que o mundo inteiro pertence a eles desde sempre. Ou, melhor dizendo: eles sentem que pertencem ao mundo.
Nós é que nos esquecemos.
*
"Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles."
Evangelho de Mateus, capítulo 6, versículos 28-29.