Uma conversa entre páginas e telas
O que caracteriza um bom filme e uma boa história em quadrinhos? Quais filmes renderiam boas HQs, e vice-versa?
“A TV é movida a emoção, enquanto quadrinhos são movidos a elaboração conceitual. Isso não quer dizer que a TV não possa ter conceitos legais ou que os quadrinhos não possam ter emoção. Mas é mais fácil alcançar emoção na TV porque você tem atores e trilha sonora, enquanto é mais fácil mostrar um conceito maneiro nos quadrinhos, já que quem lê controla o tempo enquanto lê. Assim, a pessoa pode parar e refletir sobre cada ideia que se apresenta, de um jeito que não dá em um programa de TV.”
Eu peguei essa citação do roteirista Pornsak Pinchetshote diretamente da edição de semana passada da newsletter Virapágina, do tradutor e pesquisador Érico Assis, que trouxe uma reflexão muito interessante sobre as diferenças entre cinema (ou televisão) e quadrinhos.
Você provavelmente se lembra de ocasiões em que estava no cinema (ou assistindo a um filme em casa, com amigos) e, ao olhar para o lado, se deparou com pessoas rindo alto ou chorando. Mas quantas vezes você viu alguém reagindo da mesma forma enquanto lia uma história em quadrinhos? Ainda que, como Pornsak diz, possam existir exceções entre espectadores e leitores, o tipo de padrão que ele menciona faz todo o sentido.
Para contribuir com esse debate, me peguei pensando se não existiriam alguns filmes que, por sua natureza conceitual ou metaficcional, renderiam bons quadrinhos – ou o contrário: quadrinhos que, por seu potencial de emocionar e tocar corações, poderiam se tornar filmes muito especiais. A partir dessa premissa, fiz aqui uma singela lista de obras com alto potencial “adaptável”.
Começando pelo cinema que renderia boa HQ: penso de cara em Waking Life (2001), de Richard Linklater. Nesse caso, não temos nem dificuldade de imaginar o tipo de traço que o desenhista poderia adotar. Afinal, o filme é todo feito na técnica de rotoscopia – onde são feitos desenhos em cima de filmagens, quadro a quadro. O resultado é um tipo de animação realista; e parece, na verdade, com um quadrinho em movimento. Como se não bastasse, além desse aspecto visual, Waking Life tem um roteiro repleto de discussões existenciais e filosóficas, que as vezes te fazem querer pausar cada cena para ficar pensando a respeito – algo que seria mais natural e fluido se fosse apresentado no formato de uma graphic novel.
Por sua vez, as HQs do japonês Jiro Taniguchi renderiam filmes muito tocantes. Se você assistiu Dias Perfeitos (2023), do alemão Wim Wenders, pense que aquele tipo de narrativa e de estética se assemelha bastante com o estilo de Taniguchi nos quadrinhos – não seria exagero pensar que Wenders leu O Homem que Passeia (1990) antes de produzir seu filme. As duas obras se valem da fotografia panorâmica de bairros da classe trabalhadora japonesa, representações do cotidiano pelo olhar de um protagonista flaneur, e uma dose considerável daquilo que chamam de slice of life – que é quando uma narrativa se detém em pequenos detalhes da vida comum.
Outro filme que renderia uma boa HQ é Ponto de Mutação (1990), baseado no livro de mesmo nome de Fritjop Capra. Na obra, três personagens – um político, um poeta e uma cientista – passam uma tarde caminhando por um antigo castelo em Mont Saint Michel, no litoral da França. O trio discute temas variados, como a teoria da relatividade de Einstein, o cartesianismo, ecologia, física quântica, espiritualidade, etc. Cada um deles argumenta a partir de sua específica área de atuação, resultando em uma conversa profunda e inspiradora. Apesar do baixo orçamento, o filme ficou conhecido sobretudo por seu roteiro instigante; mas não podemos deixar que, na mão de um bom autor de quadrinhos, a história poderia realmente mexer com as cabeças dos leitores.
Para encerrar esse exercício de imaginação intermidiática, apresento a HQ que é minha candidata favorita a uma possível adaptação para o cinema: Regresso ao Éden, publicada no Brasil pela Devir em 2022. Escrita e desenhada pelo espanhol Paco Roca, essa obra foi eleita por vários críticos como sendo o melhor quadrinho de 2020. Não li tantos quadrinhos publicados no mesmo ano para poder comparar, mas talvez tenha sido a leitura de HQ mais emocionante que já fiz (na verdade, antes de ler Regresso ao Éden, eu nunca tinha chorado lendo um quadrinho).
Nessa obra, Roca apresenta duas narrativas em paralelo: uma pessoal (a história da sua mãe) e outra coletiva (o contexto da ditadura franquista na primeira metade do século XX). Seja pelo tema sensível, aliado a um senso histórico notável e um manejo de mestre com as possibilidades gráficas e narrativas dos quadrinhos, o resultado acabou por render uma verdadeira obra prima. Assim, fico pensando que, se essa graphic novel for adaptada decentemente para o cinema – com um bom elenco, uma boa trilha sonora, e uma direção adequada –, certamente estaríamos diante de um filme inesquecível e atemporal.
E quais outras obras vocês acham que poderiam render boas transposições de uma mídia para outra? Fiquem à vontade para compartilhar suas opiniões.
Aproveito também para agradecer as leituras e o apoio de vocês ao longo de 2024. Foi uma enorme alegria poder trocar ideias e experiências com tantas pessoas através dessa newsletter. Um forte abraço e boas festas para todos!